sucessão na união estável

A sucessão do companheiro (união estável) causa desconforto e dúvidas a respeito da efetividade da justiça quando tratamos da sucessão patrimonial. A matéria é controversa e a relevantes debates jurídicos que discutem o tema. Recentemente o STJ suscitou a inconstitucionalidade do art. 1.790. Há projeto de lei que pretende modificar a forma em que se dará a sucessão dos companheiros.

O certo é que, em determinados casos, a diferença observada na sucessão entre os cônjuges e os companheiros é tratada de forma distinta no Código Civil e que, sob determinadas circunstâncias, determina ao companheiro direitos maiores que o cônjuge e em outras, subtrai direitos que fatalmente lhe seriam reconhecidos se acaso casado fosse.

E, após calorosos debates jurídicos a despeito do tema, foi proposto pelo Senador Roberto Cavalcanti a modificação destes dispositivos, objetivando por fim aos embates então travados.

Atuando como advogado em direito de família, entendo que, se aprovado, a nova sistemática que regula o direito sucessório ainda não trará um instrumento hábil para gerar decisões justas e que poderá, em determinados casos, continuar-se a provocando injustiças.

A título de exemplo, o Projeto de Lei prevê a meação dos bens adquiridos onerosamente na união estável, afastando a possibilidade de herdar qualquer outro quinhão. Se acaso o de cujus não tenha outro herdeiro e o espólio seja composto apenas de bens particulares, ainda que o casal tenha muitos anos e convivência, o companheiro sobrevivente se verá em uma amarga situação de miséria.

Entendemos que, quando iniciada a união estável, dever-se-ia desde logo incidir apenas a regra prevista no art. 1.829 do Código Civil, que regula a sucessão dos cônjuges. Isso porque, a união estável já é reconhecida pela Constituição Federal (Art. 226) como entidade familiar e por essa razão, o fato dos casais não formalizarem sua união não deveria ser razão para diferenciação no modo de operar-se a sucessão.

 

I – RELATÓRIO

O Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 267, de 2009, de autoria do Senador Roberto Cavalcanti, pretende alterar a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, e revogar as Leis nº 8.971, de 29 de dezembro de 1994, e nº 9.278, de 10 de maio de 1996, para assegurar a ampliação dos direitos civis dos companheiros, na união estável.

Por meio do PLS nº 267, de 2009, pretende-se corrigir algumas impropriedades introduzidas no texto do Código Civil de 2002, a saber: a) equívoco na remissão de dispositivos (inciso I do art. 1829); b) necessidade de o cônjuge sobrevivente, para garantir seu direito sucessório, provar que não teve culpa na separação do casal; c) exigência de que, para que os descendentes tenham os mesmos direitos à sucessão, pertençam à mesma classe e, não simplesmente ao mesmo grau, qualquer que seja a origem do parentesco; d) ausência do companheiro entre os herdeiros necessários.

Com as demais modificações, busca-se disciplinar de forma mais equilibrada o direito sucessório do companheiro, o qual, pela regra atual prevista no art. 1.790 do Código Civil, fica em desvantagem em relação aos demais herdeiros. O dispositivo citado prevê, por exemplo, que o companheiro, se concorrer com outros parentes sucessíveis, o que inclui os ascendentes, terá direito a um terço da herança. Propõe-se no PLS em exame que, em concorrência com ascendentes, terá direito à totalidade da herança.

Pretende-se também alterar o art. 155 do Código de Processo Civil, para que os processos que envolvam questões referentes à união estável também corram em segredo de justiça, conforme era previsto no art. 9º, da Lei nº 9.278, de 1996.

Em seu art. 5º, a proposição estabelece expressamente a revogação da Lei nº 8.971, de 29 de dezembro de 1994, e a Lei nº 9.278, 10 de maio de 1996, para conferir à união estável tratamento único, previsto apenas pelo Código Civil.

Na justificação da proposição, destaca-se que o objetivo é alterar o Código Civil para corrigir o injusto e discriminatório tratamento conferido ao direito sucessório dos companheiros na união estável.

Assinala-se, nesse sentido, que o § 3º do art. 226 da Constituição Federal reconhece a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, não deixando dúvidas de que tanto a família constituída pelo casamento, quanto a constituída pela simples união de fato entre o homem e a mulher, merecem a proteção da lei.

Não foram oferecidas emendas.

II – ANÁLISE

A matéria examinada pertence ao Direito Civil, que integra o rol de competência desta Comissão, conforme dispõe o art. 101, incisos I e II, alínea d, do Regimento Interno do Senado Federal.

A proposição atende aos requisitos formais e materiais de constitucionalidade, conforme preceitos dos arts. 22, inciso I, e 48 da Constituição Federal. Não verificamos vício de regimentalidade ou de juridicidade.

No mérito, como visto, o projeto apresentado pelo nobre Senador Roberto Cavalcanti tem o objetivo de ampliar os direitos sucessórios dos companheiros, igualando-os aos dispensados aos cônjuges, em função do paralelismo traçado na Constituição entre o casamento e a união estável.

Ocorre que, na verdade, em alguns momentos, ao reverso do que planejado, o projeto introduz direitos sucessórios diferenciados para companheiros e cônjuges, e também reduz os direitos sucessórios já assegurados aos companheiros no atual ordenamento, daí porque, ao final, se apresenta um substitutivo que, salvo melhor juízo, contempla a matéria de forma mais adequada.

Por tratar-se de assunto altamente técnico, tomei a iniciativa de procurar a subseção do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) de meu Estado (MS). O instituto, por sua vez, por meio de sua presidente, a advogada e professora universitária Lauane Andrekowisk Volpe Camargo, mestre e doutoranda em Direito Civil pela PUC/SP, me encaminhou diversas sugestões e esclarecimentos que foram incorporados ao parecer e ao substitutivo.

Atualmente, o art. 1829 do Código Civil assegura ao cônjuge direitos sucessórios em concorrência com o descendente, condicionado ao regime de bens. Assim, o cônjuge não participa da sucessão na hipótese de ser casado sob o regime da comunhão universal ou da separação obrigatória de bens, concorrendo com descendente.

Contudo, no atual art. 1829 há um erro de menção da norma que trata da separação obrigatória de bens, pois se refere ao artigo 1640, quando o correto é o artigo 1641, motivo pelo qual realmente se faz necessário alterar o texto legal neste particular, como sugerido no projeto primitivo.

Entretanto, para efetivamente igualar o direito sucessório do companheiro ao do cônjuge, na hipótese de concorrência com os descendentes, a alteração no artigo 1829 deve ser mais ampla, incluindo, portanto, a menção ao companheiro no dispositivo legal, tudo na forma do substitutivo, ao final, apresentado.

No projeto original, há proposta de revogação do art. 1790 e inserção do art. 1829-A para regular o direito dos companheiros. De fato, há muita crítica ao teor do artigo 1790 do Código Civil, seja pelo conteúdo normativo, seja pela sistematização, afinal, está inserido no capítulo que trata das Disposições Gerais, quando tal matéria deveria ser tratada no Título II, no Capítulo I, que trata da sucessão legítima.

Mas, como explica Zeno Veloso, “a localização do art. 1790 do Código é um problema menor, pois referido dispositivo merece censura e crítica severa, porque é deficiente e falho em substância” (VELOSO, Zeno. Do Direito Sucessório dos Companheiros, in Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira (coord), Direito de Família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 231).

 A crítica se deve ao conteúdo normativo, porque confere direitos sucessórios de maneira confusa e limitadora.  E assim o faz por duas razões:

Primeiro porque o caput do art. 1790 confere direitos sucessórios ao companheiro apenas aos bens adquiridos onerosamente durante a união estável, quando, em relação a tal patrimônio, o mais adequado é conferir apenas o já assegurado direito à meação, o que, portanto, afasta a incidência do direito sucessório desta parte dos bens, tal como hoje já ocorre com o cônjuge quando na concorrência com o descendente (art. 1829, I);

Segundo porque os incisos I e II do art. 1790 fazem uma distinção ao direito sucessório, quando em concorrência com descendentes. De acordo com o inciso I, se o companheiro concorrer com filhos comuns, receberá uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho. Contudo, concorrendo o companheiro sobrevivente com descendentes só do autor da herança, determina o inciso II que tocará àquele a metade do que couber a cada um desses. Mas a regra atual não prevê claramente como se dá a partilha na hipótese do cônjuge sobrevivente concorrer com descendentes comuns e descendentes apenas do de cujus. Essa redação imprecisa admite interpretações diferentes sobre o teor normativo.

Em que pese o projeto corrigir essa imperfeição – já que não faz distinção aos descendentes comuns ou não –, ainda confere direitos sucessórios diferenciados aos companheiros. Veja-se que no inciso I do art. 1829-A do texto projetado dispõe que o companheiro terá direito ao equivalente à metade de uma quota que couber a cada um dos descendentes, enquanto o cônjuge tem direito à mesma quota que couber a cada um dos descendentes.

Como o projeto visa, exatamente, dar tratamento igualitário – isto é, dar os mesmos direitos sucessórios a cônjuges e companheiros –, não há como concordar com a inclusão, no sistema brasileiro, do projetado art. 1829-A.

Por isso, no substitutivo, sugere-se uma solução mais simplificada. Pretende-se a inclusão do companheiro nos artigos 1829 (que reconhece o direito sucessório do cônjuge); 1830 (que trata do prazo de dois anos para concessão do direito sucessório do cônjuge); 1831 (que trata do quinhão do cônjuge); 1832 (que confere ao cônjuge a reserva da quarta parte, na hipótese de concorrer com descendentes); 1837 (que dispõe sobre a quota cabível ao cônjuge na hipótese de concorrência com ascendente); 1838 (que prevê que caso não existam herdeiros necessários a herança deverá ser atribuída ao cônjuge) e 1839 (que prevê a participação do cônjuge na hipótese de os colaterais serem chamados para participar da herança) do Código Cível, ao lado da referência ao cônjuge.

Tal providência, sem dúvida, assegura o tratamento igualitário, pois, com isso, tudo que se assegurar a um (cônjuge) se assegurará ao outro (companheiro).

Há outra justificativa para a não-inclusão do art. 1829-A. Seu parágrafo único confere o direito real de habitação ao companheiro, enquanto não constituir nova união ou casamento. Mas o art. 1831 confere o direito real de habitação ao cônjuge, sem a condicional de limitação a nova união estável ou casamento.

O projeto impõe, portanto, distinção entre os direitos de cônjuges e de companheiros, na contramão de seu espírito maior, que é o de assegurar igualdade.

Também se faz necessário alterar a parte final do art. 1831 para evitar conflito com demais herdeiros que também residam no imóvel. Assim, no substitutivo, se assegura o direito real de habitação ao cônjuge ou ao companheiro, apenas na hipótese de residirem no imóvel sem a co-habitação com herdeiros.

A atual redação do art. 1830 confere direito sucessório ao cônjuge, desde que não esteja separado judicialmente ou de fato há mais de 2 (dois) anos, e caso tal separação não tenha sido causada pelo cônjuge sobrevivente.

A redação desse dispositivo vem sendo criticada pela doutrina, pois condiciona o direito sucessório à prova da culpa da separação. Mas a prova da culpa há muito tempo já deixou de ser relevante no Direito de Família, enquanto as pessoas estão vivas, logo, também não deve ser exigida no Direito das Sucessões, quando um dos companheiros já faleceu.

E neste particular, acertadamente, o projeto propõe a retirada da parte final do texto, para remover a condicionante da prova acerca da culpa, o que é muito salutar, sendo, portanto, incorporado no substitutivo. A exemplo do que ocorre com o cônjuge, o acréscimo feito apenas condiciona o direito sucessório do companheiro à não-separação de fato há mais de dois anos, novamente assegurando o tratamento igualitário entre cônjuges e companheiros.

No que diz respeito ao texto projetado para o art. 1834, a proposta corrige a impropriedade da exigência de que, para que os descendentes tenham os mesmos direitos à sucessão, estes pertençam à mesma classe e não simplesmente ao mesmo grau, qualquer que seja a origem do parentesco.

 Embora tal matéria não diga respeito ao direito de cônjuges e companheiros e, sim, ao direito dos descendentes, está relacionada com a sucessão e representa avanço no aperfeiçoamento do Código Civil. Daí, sua inclusão no substitutivo.

Por fim, é oportuna a inclusão no Código de Processo Civil dos processos que tratem sobre união estável no rol de feitos protegidos pelo segredo de justiça, assim como acontece nos processos que tratam sobre o casamento. Trata-se de mais uma demonstração do paralelismo traçado na Constituição entre o casamento e a união estável.

 

Dr. Wander Barbosa | Direito de Família e Sucessões